"Thinking, Fast and Slow" de Daniel Kahneman para Advogados
O advogado é treinado para ser um pilar da lógica, mas a mente humana tem suas próprias regras. "Rápido e Devagar", de Daniel Kahneman, desvenda os dois sistemas que governam nosso pensamento. Este post traduz essa obra-prima para a advocacia, revelando como vieses e moldam decisões cruciais.
A advocacia, em sua essência, é um exercício de racionalidade. Advogados são treinados para construir argumentos lógicos, analisar evidências de forma objetiva e tomar decisões ponderadas, livres da influência das emoções. No entanto, a obra monumental do psicólogo e vencedor do Prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman, intitulada "Thinking, Fast and Slow" (publicada no Brasil como "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar"), nos força a confrontar uma verdade desconfortável: a mente humana é muito menos racional do que gostamos de acreditar. Kahneman nos apresenta um retrato fascinante e, por vezes, perturbador do nosso próprio processo de pensamento, revelando uma arquitetura mental governada por dois sistemas distintos, cujas interações, conflitos e falhas definem nossas escolhas. Para o advogado, cuja carreira depende da qualidade de seus julgamentos, compreender essa dinâmica interna não é um mero exercício intelectual; é a aquisição de uma metacompetência fundamental, uma ferramenta poderosa para aprimorar a prática jurídica, proteger-se de erros cognitivos e, em última análise, servir melhor aos seus clientes e à justiça.
Kahneman propõe que nosso pensamento é orquestrado por dois personagens principais: o Sistema 1 e o Sistema 2. O Sistema 1 é o protagonista impulsivo e intuitivo de nossa mente. Ele opera de forma automática, rápida e com pouco ou nenhum esforço. É o responsável por reconhecer um rosto familiar na multidão, completar a frase "pão com...", sentir uma aversão imediata a uma proposta que soa "boa demais para ser verdade" ou desviar de um obstáculo inesperado na calçada. Para o advogado, o Sistema 1 está em ação ao identificar instantaneamente o nervosismo na voz de uma testemunha, ao ter um "feeling" sobre a direção que uma negociação está tomando ou ao reconhecer um padrão em uma cláusula contratual que já viu centenas de vezes. Ele é eficiente, poderoso e, na maior parte do tempo, nos serve muito bem. O problema é que o Sistema 1 é também propenso a erros sistemáticos, vieses e ilusões, pois ele adora criar histórias coerentes a partir de informações limitadas, saltando para conclusões sem uma análise cuidadosa.
Em contrapartida, o Sistema 2 é o personagem analítico, deliberado e preguiçoso. Ele é ativado quando nos deparamos com atividades que exigem esforço mental, como resolver um cálculo complexo, preencher um formulário detalhado ou aprender as regras de um novo jogo. Na advocacia, o Sistema 2 é o motor da pesquisa jurisprudencial aprofundada, da redação de uma tese jurídica complexa para o Supremo Tribunal Federal, da análise minuciosa de um balanço patrimonial em uma operação de fusão e aquisição ou do cálculo de uma liquidação de sentença com múltiplos índices de correção. O Sistema 2 é a personificação do pensamento racional e lógico que tanto prezamos. Contudo, sua principal característica é a aversão ao esforço. Ele prefere delegar o máximo de tarefas possível ao Sistema 1 e só entra em cena quando absolutamente necessário. Essa "preguiça" cognitiva é a porta de entrada para muitos dos erros de julgamento que cometemos. Confiamos excessivamente nas impressões e intuições geradas pelo Sistema 1, e o Sistema 2, muitas vezes, apenas endossa essas sugestões sem uma verificação rigorosa, agindo mais como um advogado de defesa da intuição do que como um juiz imparcial.
É nessa interação que os vieses e heurísticas florescem, e o campo jurídico é um terreno fértil para eles. Tomemos o efeito de ancoragem, um dos vieses mais poderosos em qualquer negociação. A primeira proposta de acordo, por mais absurda que seja, lança uma "âncora" mental que influencia todas as contrapropostas subsequentes. Um advogado que inicia uma negociação de indenização por danos morais pedindo R$ 1 milhão, mesmo sabendo que o valor justo seria R$ 100 mil, não está sendo apenas otimista; ele está deliberadamente ancorando a discussão em um patamar elevado. O advogado da outra parte, mesmo que seu Sistema 2 saiba que o valor é desproporcional, terá seu julgamento influenciado por essa âncora inicial, e uma contraproposta de R$ 50 mil, que antes pareceria razoável, agora soa insignificante. Dominar a ancoragem significa saber como estabelecer âncoras favoráveis e, crucialmente, como se defender delas, forçando o Sistema 2 a avaliar a questão com base em critérios objetivos (jurisprudência, laudos, provas), ignorando o número inicial lançado à mesa.
Outra armadilha mental onipresente é a heurística da disponibilidade. Julgamos a frequência ou a probabilidade de um evento pela facilidade com que exemplos dele vêm à nossa mente. Um advogado que acabou de obter uma vitória espetacular em um caso de responsabilidade médica baseado em uma teoria jurídica rara e inovadora pode, inconscientemente, superestimar as chances de sucesso dessa mesma teoria em casos futuros, mesmo que as circunstâncias sejam completamente diferentes. Da mesma forma, a cobertura midiática intensa sobre um determinado tipo de crime pode levar advogados e até mesmo magistrados a perceberem aquele delito como muito mais prevalente do que as estatísticas criminais de fato indicam, influenciando o rigor de acusações e sentenças. A defesa contra essa heurística exige um esforço consciente do Sistema 2 para buscar dados estatísticos e informações de base (o que Kahneman chama de "visão de fora"), em vez de confiar apenas nos exemplos que a memória, influenciada pela vividez e pela emoção, oferece com mais facilidade.
Kahneman também explora a perigosa ilusão do excesso de confiança, alimentada pela nossa tendência de criar narrativas coerentes sobre o passado – o viés retrospectivo. Após o desfecho de um processo, tudo parece óbvio e previsível. "Eu sabia que aquele recurso não seria provido", pensa o advogado. Essa falsa sensação de previsibilidade nos leva a acreditar que somos melhores em prever o futuro do que realmente somos. Um advogado excessivamente confiante pode subestimar os riscos de uma demanda, dar conselhos assertivos demais a um cliente sobre as chances de vitória ou negligenciar a preparação para cenários adversos. A realidade, como Kahneman demonstra, é que o mundo é muito mais imprevisível do que nossas mentes narrativas gostam de admitir. Um antídoto para o excesso de confiança é a prática do "pré-mortem": antes de tomar uma decisão estratégica importante (como ajuizar uma ação de grande vulto), a equipe se reúne e imagina que a decisão já foi tomada e resultou em um fracasso retumbante. A partir daí, todos buscam as possíveis razões para esse fracasso. Esse exercício força o Sistema 2 a pensar criticamente e a antecipar fraquezas no plano que o otimismo inicial havia obscurecido.
Talvez a contribuição mais famosa de Kahneman, que lhe rendeu o Nobel, seja a Teoria da Perspectiva, que descreve como tomamos decisões sob risco. Uma de suas conclusões centrais é a aversão à perda: as perdas doem mais do que os ganhos nos dão prazer. A dor de perder R$ 1.000 é psicologicamente mais intensa do que a alegria de ganhar R$ 1.000. Na advocacia, a aversão à perda é uma força motriz poderosa e, por vezes, irracional. Ela explica por que um cliente que já está em uma posição vantajosa em uma negociação pode preferir fechar um acordo "seguro" e abaixo do ideal (para garantir um ganho) a arriscar ir a julgamento para obter um valor muito maior (evitando a possibilidade de uma perda total). Por outro lado, um cliente que está diante de uma perda certa (por exemplo, uma condenação inevitável) tende a se tornar propenso ao risco, preferindo "rolar os dados" em um recurso de pouca chance a aceitar a perda garantida. O advogado que compreende a aversão à perda pode enquadrar as opções para o cliente de forma mais eficaz, ajudando-o a superar o medo irracional e a tomar decisões que maximizem seu valor esperado, em vez de apenas minimizar o desconforto emocional de curto prazo.
Finalmente, Kahneman nos introduz aos nossos dois "eus": o "eu que experiencia" e o "eu que recorda". O "eu que experiencia" vive o momento, sentindo prazer e dor em tempo real. O "eu que recorda" é o nosso contador de histórias interno, que seleciona, edita e arquiva as memórias que formarão a base de nossas futuras decisões. O problema é que o "eu que recorda" é um péssimo arquivista. Ele é dominado pela regra do pico-fim: ele não se lembra da duração total de uma experiência, mas sim da média entre o momento de maior intensidade (o pico) e o final. Uma audiência de três horas, na qual tudo correu bem, mas que terminou com uma pergunta desastrosa do juiz, será lembrada como uma experiência negativa, mesmo que 95% dela tenha sido positiva. Compreender essa dinâmica é crucial para a gestão da experiência do cliente. Um advogado pode conduzir um processo longo e árduo com maestria, mas se a comunicação final sobre o resultado for falha ou se a entrega do alvará demorar, a memória que o cliente guardará será negativa. O advogado astuto deve, portanto, gerenciar não apenas a jornada processual, mas, com especial atenção, os picos e, principalmente, o final da experiência do cliente, garantindo que a última impressão seja positiva e reforce o valor do serviço prestado. Para a advocacia, "Rápido e Devagar" é mais do que um livro sobre psicologia; é um manual de instruções para a ferramenta mais importante de um advogado: sua própria mente. Ele nos ensina a duvidar de nossas intuições, a questionar nossas certezas e a reconhecer que a verdadeira sabedoria não reside em ter as respostas certas, mas em fazer as perguntas certas ao nosso próprio pensamento.